A Declaração de São Paulo de 1990: Um Marco para a Esquerda Latino-Americana
Em 4 de julho de 1990, São Paulo, Brasil, se tornou o palco de um evento histórico que reuniu representantes de 48 organizações, partidos e frentes de esquerda da América Latina e do Caribe. Convocado pelo Partido dos Trabalhadores (PT), este encontro, denominado "Encontro de Partidos e Organizações de Esquerda da América Latina e Caribe", foi um marco por sua amplitude e pela participação das mais diversas correntes ideológicas da esquerda.
Um Debate Franco e Plural sobre Desafios Regionais e Globais
Os participantes se reuniram com o objetivo de compartilhar análises e balanços de suas experiências e da situação mundial. O debate foi descrito como intenso, franco, plural e democrático, abordando temas cruciais:
- Análise do sistema capitalista mundial e da ofensiva imperialista: Foi discutida a investida imperialista, disfarçada por um discurso neoliberal, contra os países e povos da região.
- Avaliação da crise na Europa Oriental: O encontro analisou a crise do modelo de transição para o socialismo imposto nessa região.
- Revisão das estratégias revolucionárias: As estratégias da esquerda latino-americana foram revisadas diante do novo cenário internacional.
Este encontro foi apenas um primeiro passo para a identificação e aproximação dos problemas, com a previsão de um próximo encontro no México para aprofundar o debate e buscar propostas consensuais de unidade de ação na luta anti-imperialista e popular.
A Visão de uma Sociedade Justa e o Rejeição ao Neoliberalismo
Uma das constatações centrais do encontro foi o consenso de que uma sociedade justa, livre e soberana, e o socialismo, só podem surgir e se sustentar na vontade dos povos, enraizados em suas raízes históricas. A Declaração reafirmou a vontade comum de renovar o pensamento de esquerda e o socialismo, reafirmando seu caráter emancipador. Além disso, houve um forte compromisso em corrigir concepções errôneas e superar o burocratismo e a ausência de uma verdadeira democracia social e de massas.
Para as organizações reunidas, a sociedade livre, soberana e justa a que aspiram e o socialismo devem ser a mais autêntica das democracias e a mais profunda das justiças para os povos. Foi enfaticamente rejeitada qualquer tentativa de usar a crise da Europa Oriental para incentivar a restauração capitalista, anular conquistas sociais ou criar ilusões sobre as "inexistentes bondades do liberalismo e do capitalismo".
A experiência histórica de submissão aos regimes capitalistas e ao imperialismo demonstrou que as graves carências e problemas dos povos têm suas raízes nesse sistema, e que ele, assim como as democracias restritas e tuteladas, não oferece soluções. A saída para os povos não pode ser alheia a profundas transformações impulsionadas pelas massas.
Crítica à Proposta de "Integração Americana" de Bush
A Declaração manifestou grande alento no surgimento de forças sociais, democráticas e populares no continente que se opõem às alternativas do imperialismo e do capitalismo neoliberal, e à sua "sequela de sofrimento, miséria, atraso e opressão antidemocrática". Esta realidade, segundo a Declaração, confirma a esquerda e o socialismo como alternativas necessárias e emergentes.
Um ponto crucial de análise foi a proposta de "integração americana" formulada pelo presidente Bush para "encauzar as relações de dominação dos EUA com a América Latina e o Caribe". Essa proposta foi vista como uma "receita já conhecida, mas adoçada para torná-la mais enganosa". As críticas incluíram:
- Liquidação do patrimônio nacional: Através da privatização de empresas públicas estratégicas e rentáveis.
- Aplicação de "políticas de ajuste": Políticas que levaram a níveis sem precedentes de deterioração da qualidade de vida.
- Redução irrisória da dívida externa: Uma oferta de apenas US$ 7 bilhões de dólares na dívida oficial, insignificante diante de uma dívida total de mais de US$ 430 bilhões de dólares.
- Abertura total das economias nacionais: Expondo-as à concorrência desigual com o aparato econômico imperialista, enquanto os EUA mantêm uma lei de comércio externo restritiva.
Essas propostas foram consideradas alheias aos genuínos interesses de desenvolvimento econômico e social da região, combinadas com a restrição da soberania nacional e o corte de direitos democráticos, visando impedir uma integração autônoma da América Latina.
Solidariedade e uma Nova Visão de Unidade Continental
A Declaração expôs a "verdadeira face do Império", manifestada no cerco e agressão contra Cuba e a Revolução Sandinista na Nicarágua, no intervencionismo em El Salvador, na invasão e ocupação militar do Panamá, e nos projetos de militarização de zonas andinas sob o pretexto de combater o "narcoterrorismo".
Diante disso, a Declaração reafirmou a solidariedade com:
- A revolução socialista de Cuba.
- A revolução popular sandinista na Nicarágua.
- As forças democráticas, populares e revolucionárias salvadorenhas.
- O povo panamenho.
- Os povos andinos que enfrentam a pressão militarista.
Em contraposição à proposta de integração sob domínio imperialista, foram definidas as bases de um novo conceito de unidade e integração continental:
- Reafirmação da soberania e autodeterminação da América Latina e de suas nações.
- Plena recuperação da identidade cultural e histórica.
- Impulso à solidariedade internacionalista entre os povos.
- Defesa do patrimônio latino-americano e fim da fuga de capitais.
- Enfrentamento conjunto da impagável dívida externa.
- Adoção de políticas econômicas em benefício das maiorias.
- Compromisso ativo com os direitos humanos e a democracia e soberania popular como valores estratégicos.
Compromisso com a Verdade e a Liberdade
Os projetos de esquerda e socialistas foram renovados, com compromissos voltados à conquista do pão, da beleza e da alegria, e o objetivo de alcançar a soberania econômica e política e a primazia de valores sociais baseados na solidariedade. A Declaração expressa plena confiança nos povos, que, mobilizados, organizados e conscientes, "forjarão, conquistarão e defenderão um poder que faça realidade a justiça, a democracia e a liberdade verdadeiras".
O encontro também representou um aprendizado com erros e vitórias. Armados de um "innegociável compromisso com a verdade e com a causa de nossos povos e nações", os participantes se propuseram a continuar os esforços de intercâmbio e unidade de ação, como alicerces de uma América Latina livre, justa e soberana.
A Declaração de São Paulo de 1990, assim, não foi apenas um encontro, mas um manifesto de unidade, crítica e renovação para as forças de esquerda do continente, delineando um caminho de soberania e justiça social.
Comentários
Postar um comentário