A Verdade Sobre as Relíquias dos Santos: Fraude ou Fé? Uma Análise Inconveniente
No vasto universo da fé cristã, a veneração de relíquias tem sido, por séculos, uma prática comum para muitos. Contudo, o reformador João Calvino, em sua obra "La Reliquia Idolatrada", levanta sérias objeções a essa prática, expondo as razes pelas quais ela degenera em superstição e idolatria e como a maioria das relíquias em exibição são, na verdade, falsificações descaradas.
O Perigo da Superstição e Idolatria
Calvino argumenta que o apego a objetos físicos, como ossos, vestes ou pertences de Cristo e dos santos, desvia a atenção do essencial: buscar a Cristo em Sua Palavra, sacramentos e influências espirituais. Ele cita Agostinho, que já em sua época lamentava o tráfico vil e sórdido de supostas relíquias de mártires, expressando dúvidas sobre sua autenticidade.
Para Calvino, qualquer adoração divina "ideada pelo homem, sem ter um fundamento melhor e mais seguro que sua própria opinião," é mera vaidade e insensatez. O perigo principal é que a veneração de relíquias leva facilmente à idolatria, onde a honra devida apenas a Deus é transferida a objetos inanimados. Ele lembra que Deus escondeu o corpo de Moisés da vista humana para evitar que a nação judia caísse na adoração de seu corpo, um princípio que deveria ser aplicado a todos os santos. O apóstolo Paulo, ao afirmar que não conhecia mais Cristo "segundo a carne" após Sua ressurreição, sugere que devemos buscar Cristo em espírito, não através de objetos carnais.
A Proliferação de Relíquias Falsas: Um Engano Transparente
Calvino dedica uma parte considerável de seu trabalho a demonstrar a manifesta falsidade da maioria das relíquias expostas em sua época. Ele sugere que um inventário completo revelaria o quão ridículo e cego o mundo se tornou. A multiplicidade de relíquias para o mesmo item e a falta de base histórica ou bíblica são suas principais provas.
Vejamos alguns exemplos chocantes, conforme Calvino:
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Relíquias de Cristo:
- O Prepúcio de Cristo: Alega-se ter um em Charrox e outro em Roma, mas, claro, só houve um.
- Sangue de Cristo: Exibido em mais de cem lugares, em diferentes estados (líquido, coagulado, misturado com água), tornando sua autenticidade impossível.
- Berço, Manjedoura e Camisa de Infância: Calvino questiona como esses itens sobreviveram tanto tempo e foram "descobertos" séculos após a destruição de Jerusalém, sem qualquer menção em registros históricos antigos.
- Jarras de Caná: Várias igrejas na Europa exibem as jarras em que Cristo transformou água em vinho, mas elas variam drasticamente de tamanho, e o vinho milagroso é alegado em Orleans, nunca diminuindo de quantidade.
- A Cruz Verdadeira: Embora Helena supostamente tenha encontrado a cruz, a quantidade de fragmentos espalhados pelo mundo seria suficiente para formar "uma boa carga", muito mais do que um único indivíduo poderia carregar, como o evangelho testifica. A alegação de que a cruz não diminui é descrita como "tola e absurda".
- Os Pregos e a Coroa de Espinhos: Existem pelo menos catorze pregos alegados da crucificação em diferentes cidades, e a quantidade de espinhos da coroa é tão vasta que Calvino sugere que ela teria que ter "crescido novamente".
- A Túnica Inconsútil e o Pano de Verônica: Várias cidades reivindicam possuir a túnica de Cristo, que era sem costura, impossibilitando sua divisão. A existência do "pano de Verônica", com a imagem do rosto de Cristo, é contestada, pois os evangelistas sequer mencionam Verônica ou tal milagre.
- Lençóis Mortuários: Lençóis que supostamente envolveram o corpo de Cristo exibem uma figura de corpo inteiro, o que contradiz os costumes judaicos de sepultamento, onde a cabeça era envolta separadamente. Calvino sugere que essas "impressões" são meramente pinturas humanas.
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Relíquias da Virgem Maria:
- Embora se diga que seu corpo não está na terra, há uma infinidade de cabelos e, notavelmente, leite em "quase todas as partes" da cristandade. Calvino ironiza que, se os seios de Maria tivessem produzido leite tão copiosamente quanto uma vaca, ainda assim não seria suficiente para a quantidade exibida em tantos locais.
- Vestuário e Pertenças: Camisas (Chartrain, Acqs), sapatos de São José (que só serviriam para uma criança ou anão), anel de casamento e pentes são alegados. Calvino aponta que essas alegações contradizem a pobreza da Virgem e os costumes da época, e ele considera a exibição de seus pentes uma calúnia à Santíssima Virgem, sugerindo que era para satisfazer a vaidade dos idólatras em adornar seus ídolos.
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Relíquias de Santos e Outros Personagens:
- João Batista: Várias cidades afirmam ter partes de sua cabeça (frente, cérebro, mandíbula, orelha, testa) e múltiplos dedos (seis no total), mesmo que a história antiga relate que seu corpo foi queimado e suas cinzas espalhadas, exceto a cabeça.
- Apóstolos Pedro e Paulo: Embora supostamente metade de seus corpos esteja em Roma, fragmentos (osso da bochecha de Pedro, ombro de Paulo) e outros corpos inteiros são alegados em muitos outros locais.
- Santos Diversos: A lista de santos com múltiplos corpos e fragmentos é extensa, incluindo André, Bartolomeu, Matias (que teria três corpos), Santa Ana (múltiplas mãos e corpos), Lázaro (três corpos), Madalena (dois corpos e fragmentos). Calvino nota que a história de Lázaro e suas irmãs vindo para a França para pregar o evangelho é uma das "fábulas mais estúpidas".
- São Dionísio: Há dois corpos inteiros em locais diferentes (St. Denis e Ratisbona), com uma disputa legal resolvida em Roma, mas ignorada localmente, mostrando a desvergonha dos falsificadores.
- Santo Estêvão: Um corpo inteiro em Roma, mas sua cabeça e ossos estão em mais de duzentos lugares. Até as pedras de seu martírio são reverenciadas e vendidas com a promessa de curar partos.
- Os Inocentes: Apesar de seu número indefinido, há ossos em "quase todas as regiões do mundo", o que Calvino questiona como foram descobertos e importados em tal quantidade após tanto tempo.
A Cumplicidade na Fraude
Calvino lamenta que a cegueira do mundo tenha levado à aceitação dessas "bagatelas e brinquedos inefáveis". Ele critica a credulidade de príncipes e prelados que não apenas permitiram, mas também aprovaram e lucraram com esses enganos, gastando fortunas em "lixo". Ele desafia os defensores das relíquias a explicar as inconsistências, como os "catorze pregos" ou a "coroa de espinhos" que ocuparia uma sebe inteira.
A Necessidade de uma Reforma Genuína
Para João Calvino, a única solução é a abolição completa dessa "costume pagã" de venerar relíquias, que ele classifica como uma idolatria execrável. Ele insiste que os cristãos devem abrir os olhos, exercer seu discernimento e não se deixar enganar como "animais irracionais". A impossibilidade de autenticar a maioria das relíquias, com tantas falsidades transparentes, deve ser prova suficiente para que qualquer pessoa razoável deixe de beijá-las e de acreditar em sua autenticidade.
A lição de Calvino é clara: a fé verdadeira não se baseia em objetos materiais ou em "fraudes piedosas", mas na busca de Deus em espírito e na verdade de Sua Palavra.
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